“Antes era um soldado ou policial que
na calada da noite destruía o cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia”, diz
Marcio Sotelo Felipe, que escreveu o artigo "Lawfare, o crime chamado
Justiça", sobre a perseguição de setores do Poder Judiciário contra o
ex-presidente Lula; segundo ele, se a condenação se confirmar pelos três
desembargadores gaúchos, a Constituição passará a ser um pedaço de papel e
juízes estarão assumindo o papel de generais
Do site da presidente Dilma Rousseff
– O advogado Marcio Sotelo Felippe, procurador de Justiça de São Paulo, aponta
atitudes do juízo de primeira instância que desrespeitaram direitos do
ex-presidente Lula. Mas no artigo que publica no livro “Comentários a uma
sentença anunciada – o processo Lula”, ele denuncia que não se trata apenas de
um ou outro magistrado, mas de um Poder Judiciário assumindo funções que, nas
ditaduras clássicas, são exercidas pela força das armas. Marcio afirma:
— O reconhecimento da validade dessa
sentença pelos Tribunais superiores será a mais contundente evidência de que
vivemos um estado de exceção e a Constituição é hoje um inútil pedaço de papel.
(…) Importa, sobretudo, concluir que não estamos mais em uma democracia. O que
temos, com os preparativos e a consumação do impeachment, é uma ditadura de
novo tipo, que preserva enganosamente as instituições políticas e jurídicas
clássicas do Estado liberal e democrático, mas esvazia-as do real conteúdo
democrático (o que o jurista e magistrado Rubens Casara vem denominando
pós-democracia). Nesta ditadura de novo tipo, o que antes se fazia pela força
das armas e pela violência para destruir o adversário político agora se faz
pelo Lawfare. Nisto, o Judiciário, que nas antigas ditaduras tinha um papel
acessório, de coadjuvante, torna-se o protagonista da violência estatal
ilegítima. Antes era um soldado ou policial que na calada da noite destruía o
cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia.
LEIA ABAIXO A ÍNTEGRA DO ARTIGO DE
MÁRCIO SOTELO FELIPPE:
LAWFARE, ESSE CRIME CHAMADO JUSTIÇA
Marcio Sotelo Felippe
Concluído em primeira instância o
“processo do tríplex”, de fato constata-se que crimes foram cometidos. Os do
juiz. Sobre os imputados ao réu nada se pode dizer.
Trata-se de Lawfare. A aniquilação de
um personagem político pela via de mecanismos judiciais. A série de episódios
grotescos que caracterizou a jurisdição nesse caso não deixa qualquer dúvida a
respeito. Só o fato de o processo entrar para o imaginário social como um
combate “Moro versus Lula” (uma capa de revista estampou uma caricatura de
ambos como lutadores de box em um ringue) evidencia o caráter teratológico da
atuação do magistrado. Moro cometeu crimes, violou deveres funcionais triviais,
feriu direitos e garantias constitucionais do réu, feriu o sigilo de suas
comunicações, quis expô-lo e humilhá-lo publicamente, manteve-o detido sem
causa por horas, revelou conversas íntimas de seus familiares. Não há nada de
desarrazoado na suspeita de que o AVC de Mariza Letícia tenha tido origem na
série de constrangimentos a que sua família foi submetida.
Vejamos, nessa perspectiva, algumas
das arbitrariedades cometidas pelo juiz e aspectos da decisão que revelam ao
acolhimento de teses esdrúxulas que passam ao largo do são exercício da
magistratura e evidenciam, à saciedade, o ânimo de condenar. O reconhecimento
da validade dessa sentença pelos Tribunais superiores será a mais contundente
evidência de que vivemos um estado de exceção e a Constituição é hoje um inútil
pedaço de papel.
Violação do sigilo telefônico
A inviolabilidade da correspondência
é um clássico direito fundamental. O artigo XII da Declaração Universal dos
Direitos Humanos estabelece que “ninguém será sujeito a interferências na sua
vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência…”
Na Constituição de 1988 figura como
direito e garantia fundamental no artigo 5º., inciso XII: “é inviolável o
sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal. ”
Note-se a ressalva. Há duas condições
para que se possa violar uma comunicação telefônica: (i) uma ordem judicial;
(ii) para fins de investigação criminal ou instrução criminal penal.
A ressalva está regulamentada na Lei
9.296, de 24 de julho de 1996, que, em seu artigo 10, dispõe que “constitui crime
realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou
telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com
objetivos não autorizados em lei”. A pena prevista é de dois a quatro anos de
reclusão e multa.
Moro havia determinado escutas
telefônicas de linhas utilizadas pelo ex-presidente Lula. No dia 16 de março de
2016, às 11h13m, suspendeu a medida e comunicou à Polícia Federal. O diálogo
entre Lula e Dilma foi captado às 13h32m, quando já não estava em vigor a medida.
Moro recebeu a gravação e às 16h21m é registrado o despacho em que levantou o
sigilo e tornou pública a conversa entre a presidenta e o ex-presidente, em
seguida divulgada pela Rede Globo.
A conduta enquadra-se rigorosamente
no que prevê como crime a Lei 9.296/96. A gravação já não estava mais coberta
pela autorização judicial e não havia objetivo autorizado por lei. O dolo foi
específico e completamente impregnado de interesse político. Lula havia sido
nomeado ministro e tomaria posse no dia seguinte. A divulgação do áudio,
naquele dia, por intermédio da Rede Globo, visou a criar clima político para
inviabilizar a investidura do ex-presidente. Moro utilizou-se criminosa e
indignamente da toga para impor a Lula um revés político, tumultuar o país e
criar clima para o impeachment da presidenta.
O ministro Teori Zavaski considerou
patente a ilegalidade da divulgação da escuta. Neste caso a ilegalidade era
evidentemente crime. O ministro, no entanto, absteve-se da conclusão, não só
nesse momento, mas também, como seus pares, quando o assunto foi ao plenário do
STF.
Abuso de autoridade
As hipóteses de condução coercitiva
são taxativas no Código de Processo Penal. Pode ser determinada em dois casos,
previstos nos artigos 218 e 260. Neste, quando o acusado não atender à
intimação para o interrogatório. Naquele, quando a testemunha não atender à
intimação.
Lula foi arrancado de sua casa ao
alvorecer e levado ao aeroporto de Congonhas. O ex- presidente não era naquele
momento (4 de março de 2016) réu e não havia sido intimado. Nunca houve uma
explicação aceitável para ser conduzido ao aeroporto, dada a existência de
múltiplas instalações da União na cidade de São Paulo em que poderia ser tomado
o seu depoimento “sem tumulto” (explicação dada por Moro).
Pesa a suspeita de que a ideia era
conduzi-lo a Curitiba. Pretendia-se um espetáculo midiático (a imprensa fora
avisada) com o perverso conteúdo de uma humilhação pública do ex-presidente.
Lula foi privado por seis horas de sua liberdade. Tanto se tratou de violação à
garantia constitucional da liberdade individual quanto de abuso de autoridade,
como previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965:
‘constitui também abuso de autoridade (…) ordenar ou executar medida privativa
da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder.”
Abuso de autoridade sujeita o
responsável a sanções administrativas, civis e penais. Vale dizer, mais uma vez
Moro cometeu infração penal e violou deveres funcionais
Grampo no escritório dos advogados de
Lula
Todos os telefones do escritório de
Advocacia Teixeira Martins foram grampeados. Roberto Teixeira, notório advogado
de Lula, é o titular do escritório. A operadora Telefônica comunicou a Moro que
se tratava de escritório de advocacia. A prerrogativa de sigilo na comunicação
advogado-cliente é inerente ao direito de defesa. Moro escusou-se de forma que
beirou a zombaria: não havia atentado para os ofícios da operadora em face do
volume de serviços de sua Vara, dos inúmeros processos que lá correm. Ocorre
que Moro tem designação exclusiva e cuida apenas dos processos da Lava Jato.
Desse modo, ou confessou grave negligência ou mentiu.
Negligência que nunca se viu quando
se tratava de matéria da acusação.
Os “fundamentos” da Sentença
O fato pelo qual Lula foi condenado
pode ser assim sintetizado. Segundo a acusação, a OAS, responsável por obras em
duas refinarias da Petrobras, distribuía propinas a diretores da estatal e agentes
políticos. Teria cabido a Lula vantagem auferida basicamente por meio da
diferença de preço entre um apartamento simples e um tríplex em um edifício
situado no Guarujá, diferença que somaria R$ 2.429.921,00. Por isso Lula teria
incorrido no crime de corrupção passiva, que consiste, de acordo com o artigo
317 do Código Penal, em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta
ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão
dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
A condenação somente se justificaria
se demonstrado que Lula tinha o domínio do que ocorria na Petrobras. Que
consentiu, aderiu, participou e que houve prática de ato de ofício recompensado
pelo apartamento do Guarujá. Recorde-se que Collor foi absolvido exatamente
porque não demonstrada a prática do ato de ofício no crime de corrupção
passiva.
Nada foi provado. Não há o mais
remoto indício de prática de ato de ofício ou do domínio do que acontecia no
âmbito da estatal. Essa fragilidade Moro tentou, em vão, compensar com
confissões informais (não houve o acordo formal de delação premiada) dos
corréus da OAS, particularmente Leo Pinheiro. Após negar, em uma primeira
delação, a participação de Lula no esquema das propinas, Pinheiro mudou seu
depoimento após ser preso por Moro. Viu a oportunidade de conseguir benefícios
dizendo para Moro o que todo mundo sabia que Moro queria ouvir. Embora
condenado a mais de trinta anos também em outro processo, teve suas penas
unificadas para dois anos e seis meses de reclusão.
Vejamos a lavagem de dinheiro. Está
tipificada no artigo 1º. da Lei 9.613/98: “ocultar ou dissimular a natureza,
origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos
ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
O fato de o apartamento constar em
nome da OAS, sendo supostamente Lula o “proprietário de fato” – a alegada
vantagem pelo ato de ofício jamais praticado – ensejou a condenação por lavagem
de dinheiro.
O entendimento de que o próprio autor
do crime antecedente pode ser sujeito ativo da lavagem de dinheiro, embora
tenha adeptos, é insustentável. É parte da sanha punitivista que nos assola.
Destaca-se parte do iter criminis” para torná-lo outro crime.
Os verbos que são o núcleo do tipo,
ocultar ou dissimular, são inerentes ao crime antecedente. Ninguém comete algum
crime sem cuidar de não expor o seu produto para que possa obter a vantagem que
o moveu. Ninguém furta, por exemplo, um automóvel para desfilar ostensivamente
com ele pelas ruas da cidade. A ocultação ou dissimulação é meio para o
exaurimento do crime, apropriação final da vantagem. Portanto, punir o próprio
autor do crime por meramente ocultar ou dissimular é punir duas vezes pelo
mesmo fato, o chamado “bis in idem”.
Mesmo que se admita que o próprio
sujeito ativo do crime antecedente possa ser sujeito ativo do crime de lavagem
de dinheiro, seria necessária uma segunda conduta para tornar aproveitável o
fruto do crime. No julgamento da AP 470, o mensalão, vários ministros se
pronunciaram nesse sentido. Pela síntese e clareza tomo uma passagem do
ministro Barroso:
“O recebimento por modo clandestino e
capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria
materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e
autônoma da lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria
necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia
formal a vantagem indevidamente recebida”.
Indeterminação dos fatos e prescrição
Moro em nenhum momento estabelece em
que data exata teriam se dado os fatos. Isso é indispensável para verificar a
consumação e a consumação é o marco inicial da prescrição. Lula tem hoje mais
de 70 anos, o que reduz à metade os prazos prescricionais. Como saber em que
momento prescreverão os crimes?
Estado de Exceção
Tudo isto considerado o que temos é
típico Lawfare. A destruição do inimigo político por meio de um processo
aparentemente legal.
Moro não é um juiz solitário e
temerário perseguindo um personagem político. O Lawfare somente chegou a esse
ponto porque ele tem endosso, cobertura e cumplicidade por parte dos Tribunais
superiores, inclusive do STF, que, entre outras coisas, se omitiu diante do
crime de violação do sigilo da comunicação telefônica (Teori não se deteve
sobre o assunto quando o tema foi a plenário, assim como seus pares). Com isso
recebeu “licença para matar”.
No TRF-4, o relator da representação
contra Moro pela violação do sigilo telefônico socorreu-se de Carl Schmitt, o
príncipe dos juristas nazistas, para abrigar o fundamento de que se tratava de
uma situação excepcional, negando assim eficácia aos direitos e garantias
constitucionais do ex-presidente.
Moro tem a cobertura favorável da
grande mídia, que fez dele no imaginário popular o santo guerreiro combatendo o
dragão da maldade.
Moro participou, consciente,
deliberadamente, do golpe do impeachment. A divulgação do áudio da conversa
entre Lula e Dilma ilegalmente, entregue para divulgação pela Rede Globo no dia
imediatamente anterior à posse de Lula como ministro, não podia ter outro
objetivo.
Importa, sobretudo, concluir que não
estamos mais em uma democracia. O que temos, com os preparativos e a consumação
do impeachment, é uma ditadura de novo tipo, que preserva enganosamente as
instituições políticas e jurídicas clássicas do Estado liberal e democrático,
mas esvazia-as do real conteúdo democrático (o que o jurista e magistrado
Rubens Casara vem denominando pós-democracia). Nesta ditadura de novo tipo, o
que antes se fazia pela força das armas e pela violência para destruir o
adversário político agora se faz pelo Lawfare. Nisto, o Judiciário, que nas
antigas ditaduras tinha um papel acessório, de coadjuvante, torna-se o
protagonista da violência estatal ilegítima. Antes era um soldado ou policial
que na calada da noite destruía o cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia.
A Justiceira de Esquerda
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