Dois índios presos em momentos e locais diferentes:
um no Rio de Janeiro, outro no rio Jordão (Acre). Embora distantes no tempo e
no espaço, essas prisões arbitrárias, no frigir dos ovos, apontam na mesma
direção. Foram realizadas em defesa da propriedade privada e em nome da ordem
estabelecida e revelam como o Poder Judiciário, embora cego, é capaz de ver o
que está dentro da cabeça do réu.
No Rio, o preso, provavelmente um Puri, aparece no
boletim de ocorrência como índio genérico. Foi encarcerado no momento de
reformulação da política pública de segurança. O motivo da prisão está escrito
com todas as letras no registro policial: “o gatuno vadio tinha uma
expressão suspeitosa de quem estava pensando em roubar”. É. É isso
mesmo que você leu. O cara não roubou, mas foi preso porque acharam que ele
tinha cara de ladrão. Só procurei as anotações que fiz em minhas andanças nos
arquivos policiais, porque li agora a notícia vinda do Acre com um caso
similar.
Lá no Acre, município do Jordão, Irineu Kaxinawá,
19 anos, permaneceu trancafiado durante quatro meses na Penitenciária de
Taraucá, sem julgamento algum. Motivo da prisão: teria ajudado seu primo a
esconder na casa do avô deles roupas e bijuterias de pequeno valor que foram
surrupiadas da loja de Maria Raimunda. Detalhemos os dois casos.
Polícia da Corte
No Rio de Janeiro, a prisão foi decretada por um
juiz de direito, que ocupava o cargo de chefe de polícia, em 1831, quando a
polícia era tão eficiente que lia até pensamento. Encontrei o citado documento
no Arquivo Nacional, no Fundo Polícia da Corte, formado por 340 volumes
manuscritos, entre os quais os quais os livros com a relação de presos feita
pela Policia no séc. XIX.
Tinha muito índio no Rio, quase sempre sem emprego
e sem domicilio certo, vivendo em cortiços no centro da cidade. Entravam em
conflito permanente com a Polícia da Corte. Os motivos alegados na documentação
para prender negros e índios são diversos: atitude suspeita, vadiagem,
embriaguez, porte de canivete, desordem, agressão, furto, ausência de permissão
para se deslocar e até por estarem “pensando em roubar”.
A equipe de pesquisa que coordenei descobriu o
motivo real da prisão deste índio, quando em outro documento do Arquivo da
Cidade encontramos seu nome, no mesmo ano de 1831, como um dos trabalhadores na
reforma do Passeio Público. É que o Código Penal da época previa pena de prisão
com trabalhos forçados. A mão de obra negra estava toda ocupada nas fazendas de
café do vale do Paraíba e não havia quem cuidasse das obras públicas. Daí a
prisão dos índios. Era para isso.
Quem estudou bem essa documentação foi um gringo,
Thomas Holloway, professor de História na Universidade de Cornell, nos EUA. Ele
vasculhou os arquivos das polícias militar e civil do Rio, guardados no Arquivo
Nacional, e escreveu o livro ‘Policing Rio de Janeiro – repression
and resistance in the XIX century’ publicado pela Universidade
de Stanford. Um dos primeiros comandantes dessa nova polícia militar foi o
Duque de Caxias, encarregado de “limpar a cidade”, o que foi feito fechando os
olhos aos abusos de autoridade, à violência e à corrupção. E no Acre?
O caso do Acre
Irineu Kaxinawá, de 19 anos, vivia na Aldeia Nova
Empresa, Terra Indigena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão. Falava português com
dificuldade. Em 2010 foi estudar na cidade. Seu primo, menor de idade, roubou umas
quinquilharias, ele ajudou a esconder, sendo preso no dia 3 de outubro do ano
passado. “Foi estudar numa escola pública do Jordão e agora está fazendo
mestrado na melhor escola de bandidos do Acre, que é a penal de Tarauacá”,
escreveu o pai dele, o antropólogo Terri Aquino.
Quem deu a bolsa de mestrado ao Irineu foi a juíza
de Tarauacá, uma ex-delegada de polícia do interior do Amazonas, que negou a
liberdade provisória para que o acusado respondesse processo em liberdade. Ela
alegou que o objetivo da prisão era “evitar que o delinquente,
tendo praticado o primeiro crime, pratique novos crimes, quer porque seja
acentuadamente propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade,
encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida”.
Propensão à prática delituosa? O que é que é isso,
meu Deus! Enquanto o índio no Rio foi preso porque “estava pensando em roubar”,
o kaxinawá no Acre permaneceu quase cinco meses numa penitenciária, para evitar
que ele pensasse em roubar, no futuro.
No habeas-corpus impetrado
pelo advogado João Tezza na sexta-feira, 27 de janeiro, ele argumenta que a
decisão da juíza desconsidera que Irineu é primário, tens bons antecedentes e
profissão definida, além de residir no município do Jordão: “Trata, indevidamente, o acusado, como delinquente, antes de
qualquer condenação” – diz o advogado, para quem a juíza “imbuiu-se de poderes mediúnicos”. Conclui: “Se a previsão do futuro é indispensável ao exercício da profissão
de vidente, é vedada, por lei, no exercício da magistratura, enquanto praticada
em um Estado Democrático de Direito”.
Irineu vai agora responder em liberdade, graças ao
habeas-corpus concedido. Seu pai, um antropólogo muito respeitado e querido na
comunidade acadêmica, pode, enfim, respirar aliviado.
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