Dois índios presos em momentos e locais diferentes:
um no Rio de Janeiro, outro no rio Jordão (Acre). Embora distantes no tempo e
no espaço, essas prisões arbitrárias, no frigir dos ovos, apontam na mesma
direção. Foram realizadas em defesa da propriedade privada e em nome da ordem
estabelecida e revelam como o Poder Judiciário, embora cego, é capaz de ver o
que está dentro da cabeça do réu.

Lá no Acre, município do Jordão, Irineu Kaxinawá,
19 anos, permaneceu trancafiado durante quatro meses na Penitenciária de
Taraucá, sem julgamento algum. Motivo da prisão: teria ajudado seu primo a
esconder na casa do avô deles roupas e bijuterias de pequeno valor que foram
surrupiadas da loja de Maria Raimunda. Detalhemos os dois casos.
Polícia da Corte

Tinha muito índio no Rio, quase sempre sem emprego
e sem domicilio certo, vivendo em cortiços no centro da cidade. Entravam em
conflito permanente com a Polícia da Corte. Os motivos alegados na documentação
para prender negros e índios são diversos: atitude suspeita, vadiagem,
embriaguez, porte de canivete, desordem, agressão, furto, ausência de permissão
para se deslocar e até por estarem “pensando em roubar”.

Quem estudou bem essa documentação foi um gringo,
Thomas Holloway, professor de História na Universidade de Cornell, nos EUA. Ele
vasculhou os arquivos das polícias militar e civil do Rio, guardados no Arquivo
Nacional, e escreveu o livro ‘Policing Rio de Janeiro – repression
and resistance in the XIX century’ publicado pela Universidade
de Stanford. Um dos primeiros comandantes dessa nova polícia militar foi o
Duque de Caxias, encarregado de “limpar a cidade”, o que foi feito fechando os
olhos aos abusos de autoridade, à violência e à corrupção. E no Acre?
O caso do Acre

Quem deu a bolsa de mestrado ao Irineu foi a juíza
de Tarauacá, uma ex-delegada de polícia do interior do Amazonas, que negou a
liberdade provisória para que o acusado respondesse processo em liberdade. Ela
alegou que o objetivo da prisão era “evitar que o delinquente,
tendo praticado o primeiro crime, pratique novos crimes, quer porque seja
acentuadamente propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade,
encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida”.
Propensão à prática delituosa? O que é que é isso,
meu Deus! Enquanto o índio no Rio foi preso porque “estava pensando em roubar”,
o kaxinawá no Acre permaneceu quase cinco meses numa penitenciária, para evitar
que ele pensasse em roubar, no futuro.
No habeas-corpus impetrado
pelo advogado João Tezza na sexta-feira, 27 de janeiro, ele argumenta que a
decisão da juíza desconsidera que Irineu é primário, tens bons antecedentes e
profissão definida, além de residir no município do Jordão: “Trata, indevidamente, o acusado, como delinquente, antes de
qualquer condenação” – diz o advogado, para quem a juíza “imbuiu-se de poderes mediúnicos”. Conclui: “Se a previsão do futuro é indispensável ao exercício da profissão
de vidente, é vedada, por lei, no exercício da magistratura, enquanto praticada
em um Estado Democrático de Direito”.
Irineu vai agora responder em liberdade, graças ao
habeas-corpus concedido. Seu pai, um antropólogo muito respeitado e querido na
comunidade acadêmica, pode, enfim, respirar aliviado.
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